quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Homenagem a Jean-Michel Charlier

 
Ao lado: Jean-Michel Charlier, aos 43 anos, em seu escritório na revista “Pilote”. O roteirista acaba de pousar sua caneta, quando ele escrevia o comentário, em voz off, da estreia do episódio 10 de sua série televisiva “Les Chevaliers du Ciel”, primeira temporada (fotografia: Studio Dargaud, coleção J-Y Brouard). Acima: sua assinatura.


Celebrando os 90 anos de Jean-Michel Charlier, o blog Blueberry, uma Lenda do Oeste, em homenagem ao Alexandre Dumas da Bande Dessinée, convidou Jean-Yves Brouard, desenhista, fotógrafo, piloto de avião, escritor, roteirista e editor de Bandes Dessinées, especialista da carreira de Jean-Michel Charlier e criador e autor de jmcharlier.com, que gentilmente presenteou o seu artigo Une vie bien remplie – Uma vida bem repleta, escrito em dezembro de 2004, publicado em seu site, consagrado ao maior roteirista da história em quadrinhos francófona -, a esse evento tão especial e importante da HQ mundial. Um grande agradecimento a JYB.

Afrânio Braga


Uma vida bem repleta

Jean-Michel Charlier é conhecido principalmente como um de nossos maiores roteiristas de histórias em quadrinhos de aventuras, e um dos mais prolíficos, sem dúvida, sobretudo em consideração à qualidade das histórias inventadas. Ora, isso foi apenas uma parte de sua vida: em paralelo, ele foi um jornalista e um responsável de estruturas editoriais sucessivas, ao longo de toda sua carreira. Ele era também um apaixonado pela História e, ao mesmo tempo, autor de reportagens musculosas, isso que se traduz, em particular, pela criação, a partir dos anos 1970, de certo número de documentários para a televisão (em cujos os famosos “Dossiers noirs” transmitidos no FR-3 (1)).

Amante da literatura, namorado das palavras, portanto, ele tem começado na imprensa, com menos de vinte anos, como desenhista. Ele realiza, durante seis ou sete anos, milhares de desenhos e ilustrações. Essa dupla ou tripla atividade foi possível graças a uma potência de trabalho fenomenal, uma memória infalível, uma inteligência sintética, permitindo-lhe compreender e assimilar rapidamente, não importa qual dossiê, tão complexo esteja, uma curiosidade insaciável e uma muito grande vivacidade de espírito. Além disso, uma saúde robusta – salvo nos últimos anos de sua vida, onde, abarrotado de medicamentos, ele tomba frequentemente e, às vezes, gravemente doente – permite-lhe, em numerosas repetições, de ficar acordado 24 ou 48 horas seguidas, até mesmo mais...

Nascido em 1924, em Liège, Bélgica, ele se mete cedo no desenho e na história em quadrinhos; estudante de curso superior (ele obterá seu doutorado em Direito), ele encontra a ocasião, em 1944, de se fazer contratar por Georges Troisfontaines, o dono de uma agência fornecedora de desenhos, de histórias em quadrinhos, de rubricas e mesmo da publicidade ao grupo Dupuis, que edita, em particular, o hebdomadário “Spirou” e álbuns de HQ. Isso mete o pé no estribo de Jean-Michel Charlier, mas como desenhista somente.

Portanto, o jovem homem sonhar em se tornar oficial da marinha. Ele tinha – e ele terá ao longo de toda sua vida – uma paixão pelo mar e os barcos. Mas em 1944/1945, as circunstâncias do momento, seus primórdios na imprensa, e, sobretudo, sua aversão à matemática e ao cálculo, fizeram-lhe abandonar essa via. Depois vem seu encontro com Victor Hubinon, contratado do mesmo modo ao seio da agência de Troisfontaines. O seu primeiro trabalho comum, no outono de 1946, é baseado sobre o primeiro roteiro escrito por Charlier que seja publicado profissionalmente.


Jean-Michel Charlier, aos 24 anos, está prestes a escrever à máquina (um próximo roteiro?). A vinheta provém do álbum “Tarawa atoll sanglant”, volume 1, edição de 1975, em versão colorizada e letreiramento refeito (compreendendo um lapso na pontuação do segundo balão e conservando a mesma falha ortográfica no terceiro balão...). Os três heróis da história tinham os traços de cada um dos autores: assim, ao jornalista Sid Callahan, o desenhista Victor Hubinon tinha atribuído o físico de seu roteirista, Jean-Michel Charlier.


Pouco depois é criada “Buck Danny”, lançada por Georges Troisfontaines e Victor Hubinon (Jean-Michel Charlier intervém como roteirista – e desenhista – ao término de uma dezena de páginas). A série conhece rapidamente um enorme sucesso que não se desmentirá, mesmo após o falecimento do roteirista, 42 anos mais tarde.

Alguém o aconselha, em 1950, a abandonar o desenho para se consagrar apenas ao roteiro. As séries, as colaborações se multiplicam: “Les Histoires vraies de l’Oncle Paul”, “Les Enquêtes de Jean Valhardi”, “La Patrouille des Castors”, “Kim Devil”, “Marc Dacier”, “Tiger Joe”, “Chevalier Belloy”, “Rosine”, “Les Grands noms de l'histoire de France”, etc.

Em 1956, sobrevém um grave litígio. Os autores de HQ, em cujos seus amigos René Goscinny e Albert Uderzo, contratados, alguns anos antes, pela World’s Press, de Georges Troisfontaines, se aliam para redigir e assinar uma “carta” de defesa da profissão (em particular os autores lamentando de não serem os proprietários de seus personagens: os editores podiam os atribuir, de um dia para o outro, a outros roteiristas ou a outros desenhistas). Esse estilingue não agrada a seu patrão, que demite aquele que ele considera como o agitador: René Goscinny.

Em solidariedade, Jean-Michel Charlier e Uderzo deixam a agência; os três autores, unidos na dificuldade, fundam sua própria sociedade e tentam fazer seu buraco no meio da imprensa e da história em quadrinhos. Eles resgatam da World’s a revista publicitária “Pistolin”, lançada por eles um ano antes; em seguida, o efêmero “Jeannot” vê a luz, assim como outros projetos; companheiros de situação difícil em tempos de vacas magras, eles multiplicam os pequenos trabalhos.

Enfim, em outubro de 1959, o trio cria a revista “Pilote”. Nas páginas desse outro hebdomadário, que viveu horas difíceis nos seus primórdios, são nascidas séries muito célebres como, por exemplo, “Astérix” (de Goscinny e Uderzo), e para aquilo que é devido a Jean-Michel Charlier: os pilotos Tanguy e Laverdure, o pirata Barbe-Rouge, o escoteiro Jacques Le Gall. Em seguida, vieram o repórter Guy Lebleu e, sobretudo, o tenente Blueberry, outra grande série de sucesso de Jean-Michel Charlier, desenhada por Jean Giraud.


Caricatura de Jean-Michel Charlier, por Jijé, ilustrando os lendários atrasos do roteirista na entrega de seus textos. Em “Le Nouveau Tintin” nº 61, datado de 9 de novembro de 1976.







Indissociáveis, os dois roteiristas se tornam, em 1963, coredatores-chefe da revista, uma bipolaridade raríssima, até mesmo única, no meio... Mas a contestação estudantil e a revolta de maio de 1968 dão uma freada na carreira do especialista da HQ de aventura. A revista é em curso de mutação, como a sociedade; René Goscinny se torna o diretor da revista, a qual ele dá uma nova orientação. Os temas tradicionais, queridos a Jean-Michel Charlier, não têm mais tanto seu lugar; pouco a pouco ele se desliga, suas séries se interrompem, salvo as emblemáticas “Tanguy et Laverdure” e “Blueberry”, que vão acabar por serem publicadas em outro lugar.

Ao mesmo tempo, a televisão abre suas portas a Charlier: ele roteiriza os primeiros episódios de sua adaptação de “Tanguy et Laverdure” em seriado televisivo; sob o título “Les Chevaliers du ciel”, é um imenso sucesso internacional. Ele continua, sobre seu lançamento, escrevendo outros episódios dessa série, assim como outros seriados. Em seguida, o novo canal FR-3 propõe-lhe criar uma série, documentário dessa vez: isso são os “Dossiers Noirs”, que demonstram, de modo mais brilhante, sua capacidade como contador de histórias em imagens; ele passa em revista os grandes negócios do vigésimo século, apresentando testemunhos e documentos chocantes. Enquanto que em “Spirou”, suas séries são menos presentes, em razão particular das ocupações muito envolventes do roteirista.

Ele passa a outros canais de televisão, prossegue suas séries HQ, cria novas (“Jim Cutlass”, “Les Gringos”...), se torna, por dois anos, o diretor da redação da edição francesa da revista “Tintin”, imagina novos projetos, mais ou menos tendo êxito, de revistas de HQ, que monopolizam sua energia. Mas a fadiga e os problemas de saúde o minam; ele termina por falecer em julho de 1989.


O número de “Spirou” de 2 de agosto de 1989 rende homenagem a Jean-Michel Charlier, falecido em 10 de julho. “Spirou” é a revista que tem feito o roteirista trabalhar durante mais de 30 anos, que lhe tem permitido de iniciar no ofício e de criar entre as mais famosas séries europeias de HQ de aventuras. Na capa: uma montagem a partir de uma vinheta extraída do álbum “Les Anges bleus” (série “Buck Danny”, desenhada por seu principal cúmplice, Victor Hubinon).  








Nota do autor: 1) FR-3 é o antigo nome do canal francês France 3.

Jean-Yves Brouard
Site: www.jybaventures.net
Blog: http://jybaventures.blogspot.fr 

Une vie bien remplie © Jean-Yves Brouard 2004

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