quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Jean Giraud-Moebius: “A HQ tem necessidade de ser vista” - Entrevista

ENTREvista
Jean Giraud-Moebius: "A HQ tem necessidade de ser vista"

Por Eric Mettout 
Publicado em 25/10/2007, atualizado em 03/04/2014 às 11:59 horas


Quer ele assinasse seu verdadeiro nome ou Moebius, ele fazia a admiração de seus pares. Jean Giraud, falecido nesse sábado, era um mestre. Ele tinha participado, ao lado de William Vance e de Jean Van Hamme no buquê final de “XIII” (“La Version irlandaise”, Dargaud), essa saga que, após vinte e quatro anos, faz a felicidade de centenas de milhares de fiéis. Inapreensível, Jean Giraud? Exatamente.


     Moebius
       DR

Jean Giraud, aliás, Moebius, faleceu nesse sábado em consequência de uma longa doença. Em 2007, “L’Express” o encontrou para uma longa entrevista, na qual ele contou sua concepção da história em quadrinhos.


A série “XIII” é uma das mais populares da história em quadrinhos contemporânea. E um best-seller. Em se transplantando sobre um sucesso semelhante, não se arriscaria de perder um pouco de sua alma?

Quando se desenha uma HQ cuja cada volume vende mais de 100.000 exemplares, os interesses editoriais ultrapassam o quadro da simples criatividade, forçadamente empurrada pelas interferências exteriores. Pode-se considerar que é uma poluição e em se preservar de maneira radical. Isso não é o meu caso. Eu não me considero como um militante, que defende sua arte de um ponto de vista político. Eu luto apenas para tentar transmitir minha percepção do mundo. Outras que me são habitadas por uma espécie de missão: a vontade de refletir sobre o sistema. Ela sempre me tem sido estranha. Quando eu tenho devido escolher entre “Hara-Kiri” e “Blueberry”, eu tenho escolhido “Blueberry”. O desejo de brincar com cowboys tem sido mais forte que aquele de mudar o mundo. No entanto, Cavanna me tinha prevenido. Ele me dizia que desenhando Blueberry eu retornava no “nada”, então que trabalhando com ele, eu influenciava sobre o real. Ei! Bem, não, eu não sou verdadeiramente interessado por isso, mesmo se eu tenho uma grande afeição por aqueles que têm tomado outro caminho e lá têm feito seu trabalho, e muito bem, como Gébé, Reiser e todos os outros. E em seguida, meu trajeto tem dado nascimento a “Métal hurlant”. Isso não é tão mal.


De fato, entre Moebius e Jean Giraud, entre “L’Incal” e “Blueberry”, hoje “XIII”, você é difícil em arrumar...

Eu amo esse lado caótico e indefinível. Eu aceito aquilo que eu sou. Eu não desejo ser outro alguém nem me conformar em um ideal pré-fabricado. É o resultado de um processo que escapa largamente na análise exterior, de fato, às vezes, na análise que eu posso fazer do interior! Mas é minha única maneira de existir. Minha identidade.


Como uma forma de serenidade?

Eu tenho tido meu período “meditação transcendental”, esse gênero de coisa, até quando eu me disse: “Está bom, agora é tempo de viver.” E eu vivi. De modo muito ordinário: eu tomo o metrô, o ônibus, eu faço uso da bicicleta, do patinete, eu tenho meu carro, eu pago meus impostos, eu saio de férias, eu tento falar a minhas crianças, eu tenho uma vida em família, não forçadamente genial, mas não mais desastrosa. Não é o nirvana, não mais o inferno. Profissionalmente eu devo me desordenar. Eu vejo chegar uma jovem geração esfomeada de ser. Sua violenta vontade de existir me obriga a me reprogramar em permanência, para permanecer vivo. Por conseguinte, quando Dargaud me propôs “XIII”, uma grande tiragem, um enorme sucesso popular, eu refleti duas vezes antes de mandá-los passear. Esse mundo da ação escondida, da paranoia e do poder, tal qual é descrito na série, é atraente e assustador ao mesmo tempo. Ele corresponde a uma cultura muito atual do entretenimento, de “24 Horas” aos romances de Ludlum: uma colocação em cena dos Estados Unidos por eles mesmos.


Um mundo que, no mais, você não é totalmente estrangeiro...

Eu tenho sempre me banhado ali dentro: quando eu desenhava o western ou a ficção científica, eu me divertia com os mitos americanos. Eu sou um puro produto da penhora cultural do mundo anglo-saxônico sobre o planeta – mesmo se eu tento tirar o meu alfinete do jogo e afirmar minha especificidade. Para os europeus, meu trabalho é exógeno, para os americanos também: eu faço western francês que se desenrola nos Estados Unidos. Blueberry é francês? Ele é americano? De fato, eu sou de nenhuma parte, no where. Sim, é isso: eu sou de Nowhere City!


E “XIII”, é um pouco a mesma coisa...

É uma exploração provincial da América. William Vance [o desenhista de “XIII”] gaba-se de nunca ter colocado os pés nos Estados Unidos. Aquilo que mais me tem desconcertado, com “XIII”, é de ter que desenhar essa excentricidade que representa, para mim, o mundo contemporâneo. Com o western, eu trabalho sobre um universo fechado, circunscrito no tempo e no espaço. Quanto à ficção científica, ela é tão aberta que não há outras limitações como aquelas que eu imponho a mim mesmo para guardar um mínimo de coerência. Com “XIII”, eu tenho devido me documentar, reaprender a andar. Ela estava ali, minha dor – uma dor de rico!


Como explica que as edições Dargaud tenham feito chamada a você?

É uma marca de confiança, um tributo para uma carreira bem repleta. Era um verdadeiro desafio. Às vezes, eu não me safo. As reações de meu editor, Yves Schlirf, de Vance, de Van Hamme [o roteirista de “XIII”] me têm reconfortado, mas não suficientemente para me tranquilizar. Segundo eu, um artista deve ser capaz de avaliar a si mesmo, sem se deixar abusar pela vaidade, sem fazer seu topetinho. É um exercício difícil, para os estreantes, que não têm sempre as chaves, como para os velhos profissionais, cujas artérias sensoriais têm endurecido. Tem-se uma imagem de si que se amaria majestosa, mas, ao mesmo tempo, se sente mais e mais frágil. Quando se é jovem, cada experiência faz avançar. Em minha idade, 69 anos, eu não sou certo de ter ainda as zonas de aprendizado disponíveis. Quando eu trabalho, eu atravesso, por conseguinte, os momentos de dúvida que me empurram para fazer o melhor. Nunca eu não sou em roda livre, nunca eu me disse: “Isso, eu sei fazer.” Além disso, eu acredito profundamente, é cultural, que o trabalho e a pena são recompensados. De fato, o ser humano acumula do saber-fazer, da experiência, mas, no momento onde ele poderia se beneficiar, suas faculdades se degradam – aquilo no qual ele é mais difícil de julgar, porque a percepção de si mesmo é alterada! Pode-se tirar uma lição pessimista: tudo vai embora. Mas quanto o admitir e agir em consequência. Conforme Alejandro Jodorowsky [cineasta e roteirista, notadamente, com Moebius, da série “L’Incal”], não se deve nunca dizer: “É terminado”, nem dar um limite no tempo às suas faculdades de criação, até mesmo à sua vida simplesmente.


A criação, combate contra a morte, não é, portanto, somente um clichê?

A luta pela sobrevivência é um aspecto da criação. Existe também a luta pela beleza. O quê é a beleza? O quê é o estilo? O quê é o desenho? Para mim, essas questões se confundem com minha vida. Um artista é a expressão dele mesmo, mas igualmente de uma palavra geracional, de uma época, que é abandonada pela seguinte, petiscada por partes inteiras, até aquela que o muro se desmorone. Eu sou uma espécie de monumento histórico. É um feito incontornável. Eu não tenho que corar. Eu não tenho mais que levar a tiracolo. Os desenhistas de minha geração me têm reconhecido, como eu os reconheci. Todos não são midiatizados, mas eu sei aquilo que eu devo a eles, a todos. Agora, é verdade, a história em quadrinhos também tem necessidade de figuras emblemáticas.


Ela, no entanto, produziu pouco...

A HQ deve se bater para ser vista. Hergé, há muito tempo, serve de rosto na Europa. Conhecia-se Uderzo, Charlier, Bilal... Outros desembarcam, como Marjane Satrapi. Alguém como Sfar tem todas as qualidades humanas e artísticas para ser um ícone, notadamente essa ambição de tornar-se um elemento essencial do mundo. Ele é de sua geração e levado por ela. É como quando os políticos têm visto desembarcar Ségolène Royal: lugar aos jovens!


A comparação é ousada!

Evidentemente: ela não é pergunta de avaliar o poder. E atrás disso, a verdade está em jogo, é a HQ, sua existência, sua visibilidade. A história em quadrinhos francesa é em uma posição bizarra: ela é extremamente vivaz, mas essa vivacidade é em si inquietante, porque ela é também muito isolada. No mundo, dois outros países têm uma forte produção: o Japão e os Estados Unidos. E eles exportam. A França, que borbulha de criatividade, não exporta nada. Os profissionais e os leitores franceses não ignoram nada daquilo que se faz no Japão ou nos Estados Unidos. Os leitores japoneses ou americanos não conhecem nada daquilo que se faz na França. Mesmo na Alemanha, na Grã-Bretanha ou na Itália, não se sabe nada da história em quadrinhos franco-belga. Esse paradoxo me estraga as fichas. É como se uma bomba estava sobre o ponto de explodir.


Como você explica essa falta de reconhecimento internacional?

A história em quadrinhos francesa não é assaz exótica e a edição francesa é fragmentada. Ela avança em ordem dispersa, sem estratégia comum. A França agita-se, pratica a autofagocitose, a autocombustão, e gira em círculo. Eu falo regularmente com os editores, mas eles são demais ocupados por suas viagens a Tóquio, onde eles vão comprar os mangás e desenvolver seu departamento de história em quadrinhos japonesa.


Você lamenta então essa estratégia de visão curta?

Eu tenho contribuído em importar os mangás, na Europa, porque eu acho isso formidável. Mas isso me parece que, hoje, se é cego face a essa ameaça. Diz-se que a HQ francesa anda bem. E é verdade, no seu pequeno circuito fechado. Mas é doentia. No entanto, mais que a HQ é também em competição com o MP3, o telefone, os vídeo games... Todo o mundo rola para si e se puxa a crina.  Isso me lembra “Astérix”, ou a conquista do Oeste, com as tribos que não chegam a se entender e que são engolidas pela cavalaria americana. Ao mesmo tempo, essa diversidade, ela é genial: os Estados Unidos são um país uniforme, uma sociedade mcdonaldisada.


Precisamente, na França, se lê também muito história em quadrinhos de autor quanto os mangás...

A história em quadrinhos cobre um espectro largo e rico. Se ela se limitasse a um editor popular, como Soleil, ou, ao inverso, às experimentações da Association, isso seria inquietante – e, aliás, na Association, não se desejaria ver desaparecer a HQ de massa, não mais que na Soleil não se desejaria ver desaparecer a HQ de laboratório. As duas devem poder coabitar. Quando, em 1975, com Jean-Pierre Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farjas, se tem criado as edições dos Humanoïdes Associés, se tem participado da comunitarização das tendências.  Eu era retraído, quando eu trabalhava em “Pilote”, pela heterogeneidade: do todo popular de baixo nível às coisas muito ambiciosas, quase esotéricas. Isso não permitia a expressão de um sonho coletivo consciente. Em torno dos “Humanos” ou de “L’Echo des savanes” um geração se é cristalizada, aquela dos “jovens adultos”. O trabalho fornecido, durante dez anos, por nossa revista, “Métal hurlant”, tem mudado o tratamento e feito evoluir o olhar dado sobre a história em quadrinhos. Hoje, eu sinto a mesma energia, mas eu não posso me impedir de ser minado por uma angústia surda: atrás da ebulição, eu entendo vir a agitação.


Jean Giraud
1938 Nascimento em Nogent-sur-Marne (Val-de-Marne), França.
1963 Publicação, em “Pilote”, de “Fort Navajo”, primeiro episódio da série “Blueberry”, sobre um roteiro de Jean-Michel Charlier.
Assina, sob o pseudônimo de Moebius, histórias curtas em “Hara-Kiri”.
1975 Cocriação de “Métal Hurlant” e das edições Les Humanoïdes Associés.
1980 Publicação de “L'Incal noir”, primeiro volume da série L'Incal, sobre um roteiro de Alejandro Jodorowsky.
1981 Grand prix de la ville d'Angoulême, por ocasião do Festival de la BD. N. C.: Grande Prêmio da Cidade de Angoulême, França. Festival da HQ.
1984 Instala-se, por cinco anos, nos Estados Unidos e trabalha com James Cameron e Ron Howard.
1997 Colabora em “Le Cinquième Elément”, de Luc Besson. N. C.: “O Quinto Elemento”, filme.
2007 Lançamento de “La Version irlandaise”, sobre um roteiro de Jean Van Hamme.

Fonte: L’Express, Paris, França.

Jean Giraud-Moebius: "La BD a besoin d’être vue" – Interview © Eric Mettout, L’Express 2007

Afrânio Braga

Edições do grupo Média-Participations na Livraria Amazon Brasil




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