Ao lado: Jean-Michel Charlier, aos 43 anos, em
seu escritório na revista “Pilote”. O roteirista acaba de pousar sua caneta,
quando ele escrevia o comentário, em voz off, da estreia do episódio 10 de sua
série televisiva “Les Chevaliers du Ciel”, primeira temporada (fotografia:
Studio Dargaud, coleção J-Y Brouard). Acima: sua assinatura.
Celebrando os 90 anos de
Jean-Michel Charlier, o blog Blueberry, uma Lenda do Oeste, em homenagem ao
Alexandre Dumas da Bande Dessinée, convidou Jean-Yves Brouard, desenhista,
fotógrafo, piloto de avião, escritor, roteirista e editor de Bandes Dessinées,
especialista da carreira de Jean-Michel Charlier e criador e autor de
jmcharlier.com, que gentilmente presenteou o seu artigo Une vie bien remplie – Uma vida bem repleta, escrito em dezembro de
2004, publicado em seu site, consagrado ao maior roteirista da história em
quadrinhos francófona -, a esse evento tão especial e importante da HQ mundial.
Um grande agradecimento a JYB.
Afrânio
Braga
Uma vida bem repleta
Jean-Michel Charlier é conhecido principalmente
como um de nossos maiores roteiristas de histórias em quadrinhos de aventuras,
e um dos mais prolíficos, sem dúvida, sobretudo em consideração à qualidade das
histórias inventadas. Ora, isso foi apenas uma parte de sua vida: em paralelo,
ele foi um jornalista e um responsável de estruturas editoriais sucessivas, ao
longo de toda sua carreira. Ele era também um apaixonado pela História e, ao
mesmo tempo, autor de reportagens musculosas, isso que se traduz, em
particular, pela criação, a partir dos anos 1970, de certo número de
documentários para a televisão (em cujos os famosos “Dossiers noirs” transmitidos
no FR-3 (1)).
Amante da literatura, namorado das palavras,
portanto, ele tem começado na imprensa, com menos de vinte anos, como
desenhista. Ele realiza, durante seis ou sete anos, milhares de desenhos e
ilustrações. Essa dupla ou tripla atividade foi possível graças a uma potência
de trabalho fenomenal, uma memória infalível, uma inteligência sintética,
permitindo-lhe compreender e assimilar rapidamente, não importa qual dossiê, tão
complexo esteja, uma curiosidade insaciável e uma muito grande vivacidade de
espírito. Além disso, uma saúde robusta – salvo nos últimos anos de sua vida,
onde, abarrotado de medicamentos, ele tomba frequentemente e, às vezes,
gravemente doente – permite-lhe, em numerosas repetições, de ficar acordado 24 ou
48 horas seguidas, até mesmo mais...
Nascido em 1924, em Liège, Bélgica, ele se mete
cedo no desenho e na história em quadrinhos; estudante de curso superior (ele
obterá seu doutorado em Direito), ele encontra a ocasião, em 1944, de se fazer
contratar por Georges Troisfontaines, o dono de uma agência fornecedora de
desenhos, de histórias em quadrinhos, de rubricas e mesmo da publicidade ao
grupo Dupuis, que edita, em particular, o hebdomadário “Spirou” e álbuns de HQ.
Isso mete o pé no estribo de Jean-Michel Charlier, mas como desenhista somente.
Portanto, o jovem homem sonhar em se tornar oficial
da marinha. Ele tinha – e ele terá ao longo de toda sua vida – uma paixão pelo
mar e os barcos. Mas em 1944/1945, as circunstâncias do momento, seus
primórdios na imprensa, e, sobretudo, sua aversão à matemática e ao cálculo, fizeram-lhe
abandonar essa via. Depois vem seu encontro com Victor Hubinon, contratado do
mesmo modo ao seio da agência de Troisfontaines. O seu primeiro trabalho comum,
no outono de 1946, é baseado sobre o primeiro roteiro escrito por Charlier que
seja publicado profissionalmente.
Jean-Michel Charlier, aos 24 anos, está prestes a escrever à máquina (um
próximo roteiro?). A vinheta provém do álbum “Tarawa atoll sanglant”, volume 1,
edição de 1975, em versão colorizada e letreiramento refeito (compreendendo um lapso
na pontuação do segundo balão e conservando a mesma falha ortográfica no
terceiro balão...). Os três heróis da história tinham os traços de cada um dos
autores: assim, ao jornalista Sid Callahan, o desenhista Victor Hubinon tinha atribuído
o físico de seu roteirista, Jean-Michel Charlier.
Pouco depois é criada “Buck Danny”, lançada por Georges
Troisfontaines e Victor Hubinon (Jean-Michel Charlier intervém como roteirista
– e desenhista – ao término de uma dezena de páginas). A série conhece
rapidamente um enorme sucesso que não se desmentirá, mesmo após o falecimento
do roteirista, 42 anos mais tarde.
Alguém o aconselha, em
1950, a abandonar o desenho para se consagrar apenas ao roteiro. As séries, as
colaborações se multiplicam: “Les Histoires vraies de l’Oncle Paul”, “Les
Enquêtes de Jean Valhardi”, “La Patrouille des Castors”, “Kim Devil”, “Marc
Dacier”, “Tiger Joe”, “Chevalier Belloy”, “Rosine”, “Les Grands noms de
l'histoire de France”, etc.
Em 1956, sobrevém um
grave litígio. Os autores de HQ, em cujos seus amigos René
Goscinny e Albert Uderzo, contratados, alguns anos antes, pela World’s Press,
de Georges Troisfontaines, se aliam para redigir e assinar uma “carta” de
defesa da profissão (em particular os autores lamentando de não serem os
proprietários de seus personagens: os editores podiam os atribuir, de um dia
para o outro, a outros roteiristas ou a outros desenhistas). Esse estilingue
não agrada a seu patrão, que demite aquele que ele considera como o agitador:
René Goscinny.
Em solidariedade, Jean-Michel Charlier e Uderzo deixam a agência;
os três autores, unidos na dificuldade, fundam sua própria sociedade e tentam
fazer seu buraco no meio da imprensa e da história em quadrinhos. Eles resgatam
da World’s a revista publicitária “Pistolin”, lançada por eles um ano antes; em
seguida, o efêmero “Jeannot” vê a luz, assim como outros projetos; companheiros
de situação difícil em tempos de vacas magras, eles multiplicam os pequenos trabalhos.
Enfim, em outubro de 1959, o trio cria a revista “Pilote”. Nas
páginas desse outro hebdomadário, que viveu horas difíceis nos seus primórdios,
são nascidas séries muito célebres como, por exemplo, “Astérix” (de Goscinny e
Uderzo), e para aquilo que é devido a Jean-Michel Charlier: os pilotos Tanguy e
Laverdure, o pirata Barbe-Rouge, o escoteiro Jacques Le Gall. Em seguida,
vieram o repórter Guy Lebleu e, sobretudo, o tenente Blueberry, outra grande
série de sucesso de Jean-Michel Charlier, desenhada por Jean Giraud.
Caricatura de Jean-Michel Charlier, por Jijé, ilustrando os lendários
atrasos do roteirista na entrega de seus textos. Em “Le Nouveau Tintin” nº 61,
datado de 9 de novembro de 1976.
Indissociáveis, os dois roteiristas se tornam, em
1963, coredatores-chefe da revista, uma bipolaridade raríssima, até mesmo
única, no meio... Mas a contestação estudantil e a revolta de maio de 1968 dão
uma freada na carreira do especialista da HQ de aventura. A revista é em curso
de mutação, como a sociedade; René Goscinny se torna o diretor da revista, a
qual ele dá uma nova orientação. Os temas tradicionais, queridos a Jean-Michel
Charlier, não têm mais tanto seu lugar; pouco a pouco ele se desliga, suas
séries se interrompem, salvo as emblemáticas “Tanguy et Laverdure” e
“Blueberry”, que vão acabar por serem publicadas em outro lugar.
Ao mesmo tempo, a televisão abre suas portas a
Charlier: ele roteiriza os primeiros episódios de sua adaptação de “Tanguy et
Laverdure” em seriado televisivo; sob o título “Les Chevaliers du ciel”, é um
imenso sucesso internacional. Ele continua, sobre seu lançamento, escrevendo
outros episódios dessa série, assim como outros seriados. Em seguida, o novo
canal FR-3 propõe-lhe criar uma série, documentário dessa vez: isso são os
“Dossiers Noirs”, que demonstram, de modo mais brilhante, sua capacidade como
contador de histórias em imagens; ele passa em revista os grandes negócios do
vigésimo século, apresentando testemunhos e documentos chocantes. Enquanto que
em “Spirou”, suas séries são menos presentes, em razão particular das ocupações
muito envolventes do roteirista.
Ele
passa a outros canais de televisão, prossegue suas séries HQ, cria novas (“Jim
Cutlass”, “Les Gringos”...), se torna, por dois anos, o diretor da redação da
edição francesa da revista “Tintin”, imagina novos projetos, mais ou menos tendo
êxito, de revistas de HQ, que monopolizam sua energia. Mas a fadiga e os
problemas de saúde o minam; ele termina por falecer em julho de 1989.
O número de “Spirou” de 2 de agosto de 1989 rende homenagem a
Jean-Michel Charlier, falecido em 10 de julho. “Spirou” é a revista que tem
feito o roteirista trabalhar durante mais de 30 anos, que lhe tem permitido de iniciar
no ofício e de criar entre as mais famosas séries europeias de HQ de aventuras.
Na capa: uma montagem a partir de uma vinheta extraída do álbum “Les Anges
bleus” (série “Buck Danny”, desenhada por seu principal cúmplice, Victor
Hubinon).
Nota do autor: 1) FR-3 é o antigo nome do canal francês France 3.
Jean-Yves
Brouard
Site: www.jybaventures.net
Blog: http://jybaventures.blogspot.fr
Une vie bien remplie ©
Jean-Yves Brouard 2004