UM HERÓI DE UM GÊNERO NOVO
Ele não surge da noite, tal Zorro, para correr rumo à aventura a galope.
Não, Mike T. Blueberry (o T. se transformará em S., para Steve, mais tarde)
apareceu pela primeira vez, de face, no sétimo quadrinho de Forte Navajo, à mesa, cartas na mão e
charuto no bico, em uma casa de jogo. Certamente, ele não tinha ainda sua barba
de três dias – poderia mesmo ele ter se lavado recentemente? -, para que se
pudesse bem admirar seu pequeno ar de Belmondo (1) insolente. Mas o espírito do
personagem e da série já está presente. Em duas páginas, se saberá que ele
trapaceia no jogo, que ele coxeia de álcool e não despreza uma boa briga, tanto
mais que ele atira rápido e certeiro. A longa busca através de um Oeste
selvagem e desordenado pode desatracar. Uma saga aos princípios falsamente
clássicos que vai simplesmente revolucionar todo o universo familiar da
história em quadrinhos.
N. C.:
1) Jean-Paul Belmondo, ator francês.
PRIMEIRA APARIÇÃO,
QUADRO CHEIO,
DE BLUEBERRY,
EM FORT NAVAJO.
Blueberry é então nascido em 31 de outubro de 1963, em Pilote, do cérebro
fecundo de Jean-Michel Charlier e da pena alerta de Gir, aliás, Jean Giraud. O
primeiro, diretor das edições Dargaud que já roteirizava Buck Danny, La Patrouille des
Castors, Marc Dacier, “Les Chevaliers du ciel”, Le Démon des Caraïbes e tantas outras séries de sucesso, era
apaixonado pela América e pela história do Oeste. O segundo, jovem desenhista
promissor, para não dizer sobredotado, amante de westerns e formado na escola
ideal do grande Jijé. Os dois foram feitos para se entender e, mais ainda, se
completar.
Blueberry introduz no universo HQ da época,
principalmente adolescente, uma referência
à outra cultura, mais de vanguarda.
Físico atípico
“A escolha do nome, foi eu”, se lembra Jean Giraud.
“Eu amei o som, a fonética de Blueberry, e isso, imediatamente, mais a
Jean-Michel. É isso que pode ter dado a ele a ideia de fazer um Sulista que
passa ao Norte. Quanto à escolha de Belmondo, para os traços, isso trairia bem
uma vontade. Não se imaginaria então que Bébel iria tornar-se tal ícone
popular. Para nós, era justo uma figura da Nouvelle Vague com um ar de
outsider, um físico atípico com relação aos jovens em voga. Ele tinha um
aspecto de rapazinho. Assim, eu introduziria no universo HQ da época,
principalmente adolescente, uma referência à outra cultura, mais de vanguarda.”
EM POUCO MAIS
DE DEZ ANOS,
BLUEBERRY SE TEM
METAMORFOSEADO
DE UM INSOLENTE
E NEGLIGENTE
TENENTE DE ROSTO
LISO EM UMA APARÊNCIA
RESSECADA, ENDURECIDA
AOS TRAÇOS MARCADOS.
Representante da desordem
Assim, se Charlier explora, como era seu hábito,
seu excepcional saber-fazer de contador de histórias, misturando sua precisão
de documentarista à sua arte de inventar, semana após semana, as situações e as
reviravoltas que mantém sem faltar o leitor sem fôlego, ele encontra em Gir um
desenhista que arrebata suas narrativas mais longe ainda, ruma a esferas que
ele não tinha imaginado. O estilo cinematográfico, brilhantemente desalinhado,
em uma expressão realista, que entorta as convenções, está em fase com a época,
os anos 1960, onde certa contestação e emancipação são em colocação. Os
leitores de Pilote, revista mais
estudantil que pré-adolescente, plebiscitam esse herói de um gênero novo,
iconoclasta e rebelde, refratário à autoridade, contestatário da hierarquia. Blueberry
tem sido um bom militar totalmente ao longo dos dez primeiros álbuns da série,
ele não é inferior e constantemente um representante da desordem.
“Jean-Michel, imediatamente, tem compreendido que
esse desvio dos cânones da HQ tradicional constituía um formidável trunfo”,
analisa Giraud. “Um público novo emergia, que não se encontrava no
ultraconservadorismo de uma série como, por exemplo, Tanguy et Laverdure. Charlier tem captado, perfeitamente, essa
escorregadela.” Blueberry, portanto, não tem mais nada do personagem direito e
sem censura que sempre havia sido colocado em evidência até ali. O importante
restava justo que, apesar de todas as suas manias e defeitos, ele permanece
simpático.
Sujeira, fadiga e sofrimento
Mike, militar insubordinado, malandro em boa
essência, não se estende em quase nada com as pessoas higiênicas em si mesmas.
Seus raros amigos se contam de preferência entre os seres delicados à
moralidade duvidosa, começando por um velho bêbado prospector, Jimmy McClure, e
um antigo mensageiro do US Postal pouco reluzente, Red Neck. À semelhança
desses dois companheiros de estrada, ele desfralda a maior parte do tempo uma
barba nascente que se imagina imunda. Pois, “Blueberry” é provavelmente uma das
primeiras séries “odorama”. Saído do exército (que o tenente deixará com a
cabeça um tanto baixa após Chihuahua
Pearl) e da alta sociedade, a sujeira e a falta de higiene, como a fadiga e
o sofrimento, são ao desvio de cada aventura. “Até ali, é verdade que a HQ era
muito assepsiada”, se recorda ainda Giraud. “Tal não se fazia que livrar os
sinais sobre a aflição dos seres humanos, sobre suas patologias; sobre a morte,
em suma.”
Destino selado, herói livre
Mas ali não se detém a transgressão. Preso no jogo,
estimulado por uma criação que lhe oferece tantos campos, Jean-Michel Charlier
rompe outro tabu. Quebrando a tradicional atemporalidade dos heróis de HQ, ele se
diverte, em paralelo às aventuras de Blueberry, que se prosseguem em Pilote, a colocar em cena em Super Pocket Pilote os jovens anos – sua
implicação na Guerra de Secessão – de seu personagem. Ancorando-o no tempo, o
autor não somente introduz a noção de envelhecimento, mas também aquela de um
percurso e de um passado que influenciam, inevitavelmente, sobre sua
psicologia.
Mais forte ainda, em prefácio na edição do álbum de
Ballade pour un cercueil, o
roteirista vai até redigir uma longa biografia detalhada de Blueberry, pseudo documentos
de época no apoio, onde se sabe que ele tem visto a luz em 30 de outubro de
1843, nas proximidades de Augusta, Geórgia, sob o nome de Mike Steve Donovan, para
morrer, nonagenário, em 5 de dezembro de 1933 em Chicago! Ironia da sina, é
selando assim o destino de seu personagem que Charlier pode ter,
inconscientemente, libertado Blueberry da tutela de seus criadores. Desde a
metade dos anos 1980, Giraud, monopolizado por seu trabalho sob o nome de
Mœbius, deixa o desenho da coleção La
Jeunesse de Blueberry aos bons cuidados de Colin Wilson. Mas, sobretudo,
após o falecimento do roteirista, em 1989, quando Arizona Love está em curso de realização, Jean Giraud não se
contenta de prosseguir naturalmente a série, assegurando doravante ele mesmo a
escritura, ele confiará a outros (os desenhistas William Vance, Michel
Blanc-Dumont e, ainda, Colin Wilson para o desenho, mas também François
Corteggiani para o roteiro) o cuidado de desenvolver as séries paralelas.
Blueberry, condenado a viver
“Com essa biografia, se tem colocado o eixo em uma
engrenagem louca”, conclui Giraud. “Tem-se aberto aquela possibilidade de
tratar Blueberry de modo panorâmico, fazer publicar, em simultâneo, os álbuns
onde ele é jovem, menos jovem e por que não, um dia, velho? Se poderia mesmo
contar a história de sua morte sem para tanto que a série se acabe. Blueberry é
um companheiro de vida extremamente familiar. Ele é parte de mim mesmo, então
eu tomei o cuidado de não tombar no fetichismo. É por isso que eu tenho feito
os esforços para deixá-lo se evadir o confiando a outros. No fundo, Blueberry
conhece a angústia de ser condenado a viver por seu criador.”
«Publicando sua biografia, se tem
colocado
o eixo em uma engrenagem louca. Tem-se
aberto aquela possibilidade de tratar
Blueberry de modo panorâmico, fazer
publicar, em simultâneo, os álbuns
onde
ele é jovem, menos jovem e por que
não,
um dia, velho?» Jean Giraud
CASACAS AZUIS, COWBOYS E ÍNDIOS
EM LE CHEVAL DE FER, EM 1966.
MAS PARA BLUEBERRY, O WESTERN
CLÁSSICO JÁ TOCA EM SEU FIM.
A HORA DOS COMBATES MAIS
ÍNTIMOS VAI SOAR (L’HOMME QUI
VALAIT 500000 DOLLARS, 1971).
1990, GIRAUD PROSSEGUE SÓ
A SÉRIE, APÓS O FALECIMENTO
DE JEAN-MICHEL CHARLIER:
ARIZONA LOVE OFERECE UMA
COMPANHEIRA AO HERÓI SOLITÁRIO.
Fonte:
Un héros d’un genre nouveau, artigo publicado em Blueberry HC Les Monts de la Superstition.
Blueberry
HC Les Monts de la Superstition © Jean-Michel Charlier / Jean Giraud - Dargaud
Éditeur 2003
N.
C.: Blueberry HC Les Monts de la
Superstition. Integral de Blueberry
dos volumes 11, La Mine de l’Allemand
perdu (“A Mina do Alemão Perdido”), e 12, Le Spectre aux balles d’or (“O
Espectro das Balas de Ouro”); Dyptique de la mine (Díptico da Mina) mais um
caderno de 16 páginas com artigos, entre os quais Un héros d’un genre nouveau
(Um Herói de um Gênero Novo), e “Blueberry” visto por outros desenhistas. O
álbum Les Monts de la Superstition
(“Os Montes da Superstição”) foi publicado, em 2003, por ocasião dos 40 anos do
personagem Blueberry.
Fontes
das imagens: BDgest: Mike Blueberry. 4.bp: Tenente Blueberry jovem. Bedetheque:
“Blueberry” nº 1 “Fort Navajo”, prancha 1, quadrinho 7; ilustração da capa de
“Blueberry” nº 15 “Ballade pour un cercueil”. Stripsuithedenenverleden:
Blueberry amadurecido (N. C.: extrato da prancha 1 de “Blueberry” nº 17 “Angel
Face”). Dargaud Éditeur: as capas de “Blueberry” nº 7 “Le Cheval de fer”,
“Blueberry” nº 14 “L’Homme qui valait 500000$” e “Blueberry” nº 23 “Arizona
Love”.
Afrânio Braga