ENTREvista
Jean Giraud-Moebius: "A HQ tem necessidade de
ser vista"
Por Eric
Mettout
Publicado em 25/10/2007, atualizado
em 03/04/2014 às 11:59 horas
Quer ele
assinasse seu verdadeiro nome ou Moebius, ele fazia a admiração de seus pares.
Jean Giraud, falecido nesse sábado, era um mestre. Ele tinha participado, ao
lado de William Vance e de Jean Van Hamme no buquê final de “XIII” (“La Version
irlandaise”, Dargaud), essa saga que, após vinte e quatro anos, faz a
felicidade de centenas de milhares de fiéis. Inapreensível, Jean Giraud?
Exatamente.
Moebius
DR
Jean Giraud, aliás,
Moebius, faleceu nesse sábado em consequência de uma longa doença. Em 2007,
“L’Express” o encontrou para uma longa entrevista, na qual ele contou sua
concepção da história em quadrinhos.
A série “XIII” é uma
das mais populares da história em quadrinhos contemporânea. E um best-seller. Em
se transplantando sobre um sucesso semelhante, não se arriscaria de perder um
pouco de sua alma?
Quando se desenha uma HQ cuja cada volume vende mais de 100.000
exemplares, os interesses editoriais ultrapassam o quadro da simples
criatividade, forçadamente empurrada pelas interferências exteriores. Pode-se
considerar que é uma poluição e em se preservar de maneira radical. Isso não é
o meu caso. Eu não me considero como um militante, que defende sua arte de um
ponto de vista político. Eu luto apenas para tentar transmitir minha percepção do
mundo. Outras que me são habitadas por uma espécie de missão: a vontade de
refletir sobre o sistema. Ela sempre me tem sido estranha. Quando eu tenho
devido escolher entre “Hara-Kiri” e “Blueberry”, eu tenho escolhido
“Blueberry”. O desejo de brincar com cowboys tem sido mais forte que aquele de
mudar o mundo. No entanto, Cavanna me tinha prevenido. Ele me dizia que
desenhando Blueberry eu retornava no “nada”, então que trabalhando com ele, eu
influenciava sobre o real. Ei! Bem, não, eu não sou verdadeiramente interessado
por isso, mesmo se eu tenho uma grande afeição por aqueles que têm tomado outro
caminho e lá têm feito seu trabalho, e muito bem, como Gébé, Reiser e todos os
outros. E em seguida, meu trajeto tem dado nascimento a “Métal hurlant”. Isso
não é tão mal.
De fato, entre
Moebius e Jean Giraud, entre “L’Incal” e “Blueberry”, hoje “XIII”, você é
difícil em arrumar...
Eu amo esse lado caótico e indefinível. Eu aceito aquilo que eu sou. Eu
não desejo ser outro alguém nem me conformar em um ideal pré-fabricado. É o
resultado de um processo que escapa largamente na análise exterior, de fato, às
vezes, na análise que eu posso fazer do interior! Mas é minha única maneira de
existir. Minha identidade.
Como uma forma de
serenidade?
Eu tenho tido meu período “meditação transcendental”, esse gênero de coisa,
até quando eu me disse: “Está bom, agora é tempo de viver.” E eu vivi. De modo
muito ordinário: eu tomo o metrô, o ônibus, eu faço uso da bicicleta, do
patinete, eu tenho meu carro, eu pago meus impostos, eu saio de férias, eu
tento falar a minhas crianças, eu tenho uma vida em família, não forçadamente
genial, mas não mais desastrosa. Não é o nirvana, não mais o inferno.
Profissionalmente eu devo me desordenar. Eu vejo chegar uma jovem geração
esfomeada de ser. Sua violenta vontade de existir me obriga a me reprogramar em
permanência, para permanecer vivo. Por conseguinte, quando Dargaud me propôs
“XIII”, uma grande tiragem, um enorme sucesso popular, eu refleti duas vezes
antes de mandá-los passear. Esse mundo da ação escondida, da paranoia e do
poder, tal qual é descrito na série, é atraente e assustador ao mesmo tempo.
Ele corresponde a uma cultura muito atual do entretenimento, de “24 Horas” aos
romances de Ludlum: uma colocação em cena dos Estados Unidos por eles mesmos.
Um mundo que, no mais, você não é
totalmente estrangeiro...
Eu tenho sempre me banhado ali dentro: quando eu desenhava o western ou
a ficção científica, eu me divertia com os mitos americanos. Eu sou um puro
produto da penhora cultural do mundo anglo-saxônico sobre o planeta – mesmo se
eu tento tirar o meu alfinete do jogo e afirmar minha especificidade. Para os
europeus, meu trabalho é exógeno, para os americanos também: eu faço western
francês que se desenrola nos Estados Unidos. Blueberry é francês? Ele é
americano? De fato, eu sou de nenhuma parte, no where. Sim, é isso: eu sou de Nowhere City!
E “XIII”, é um pouco
a mesma coisa...
É uma exploração provincial da América. William Vance [o desenhista de
“XIII”] gaba-se de nunca ter colocado os pés nos Estados Unidos. Aquilo que
mais me tem desconcertado, com “XIII”, é de ter que desenhar essa
excentricidade que representa, para mim, o mundo contemporâneo. Com o western,
eu trabalho sobre um universo fechado, circunscrito no tempo e no espaço.
Quanto à ficção científica, ela é tão aberta que não há outras limitações como
aquelas que eu imponho a mim mesmo para guardar um mínimo de coerência. Com
“XIII”, eu tenho devido me documentar, reaprender a andar. Ela estava ali,
minha dor – uma dor de rico!
Como explica que as edições
Dargaud tenham feito chamada a você?
É uma marca de confiança, um tributo para uma carreira bem repleta. Era
um verdadeiro desafio. Às vezes, eu não me safo. As reações de meu editor, Yves
Schlirf, de Vance, de Van Hamme [o roteirista de “XIII”] me têm reconfortado,
mas não suficientemente para me tranquilizar. Segundo eu, um artista deve ser
capaz de avaliar a si mesmo, sem se deixar abusar pela vaidade, sem fazer seu
topetinho. É um exercício difícil, para os estreantes, que não têm sempre as chaves,
como para os velhos profissionais, cujas artérias sensoriais têm endurecido.
Tem-se uma imagem de si que se amaria majestosa, mas, ao mesmo tempo, se sente
mais e mais frágil. Quando se é jovem, cada experiência faz avançar. Em minha
idade, 69 anos, eu não sou certo de ter ainda as zonas de aprendizado
disponíveis. Quando eu trabalho, eu atravesso, por conseguinte, os momentos de
dúvida que me empurram para fazer o melhor. Nunca eu não sou em roda livre,
nunca eu me disse: “Isso, eu sei fazer.” Além disso, eu acredito profundamente,
é cultural, que o trabalho e a pena são recompensados. De fato, o ser humano
acumula do saber-fazer, da experiência, mas, no momento onde ele poderia se
beneficiar, suas faculdades se degradam – aquilo no qual ele é mais difícil de julgar,
porque a percepção de si mesmo é alterada! Pode-se tirar uma lição pessimista: tudo
vai embora. Mas quanto o admitir e agir em consequência. Conforme Alejandro
Jodorowsky [cineasta e roteirista, notadamente, com Moebius, da série
“L’Incal”], não se deve nunca dizer: “É terminado”, nem dar um limite no tempo
às suas faculdades de criação, até mesmo à sua vida simplesmente.
A criação, combate contra
a morte, não é, portanto, somente um clichê?
A luta pela sobrevivência é um aspecto da criação. Existe também a luta
pela beleza. O quê é a beleza? O quê é o estilo? O quê é o desenho? Para mim,
essas questões se confundem com minha vida. Um artista é a expressão dele
mesmo, mas igualmente de uma palavra geracional, de uma época, que é abandonada
pela seguinte, petiscada por partes inteiras, até aquela que o muro se
desmorone. Eu sou uma espécie de monumento histórico. É um feito incontornável.
Eu não tenho que corar. Eu não tenho mais que levar a tiracolo. Os desenhistas
de minha geração me têm reconhecido, como eu os reconheci. Todos não são midiatizados,
mas eu sei aquilo que eu devo a eles, a todos. Agora, é verdade, a história em
quadrinhos também tem necessidade de figuras emblemáticas.
Ela, no entanto,
produziu pouco...
A HQ deve se bater para ser vista. Hergé, há muito tempo, serve de rosto
na Europa. Conhecia-se Uderzo, Charlier, Bilal... Outros desembarcam, como
Marjane Satrapi. Alguém como Sfar tem todas as qualidades humanas e artísticas
para ser um ícone, notadamente essa ambição de tornar-se um elemento essencial
do mundo. Ele é de sua geração e levado por ela. É como quando os políticos têm
visto desembarcar Ségolène Royal: lugar aos jovens!
A comparação é
ousada!
Evidentemente: ela não é pergunta de avaliar o poder. E atrás disso, a
verdade está em jogo, é a HQ, sua existência, sua visibilidade. A história em
quadrinhos francesa é em uma posição bizarra: ela é extremamente vivaz, mas
essa vivacidade é em si inquietante, porque ela é também muito isolada. No
mundo, dois outros países têm uma forte produção: o Japão e os Estados Unidos.
E eles exportam. A França, que borbulha de criatividade, não exporta nada. Os
profissionais e os leitores franceses não ignoram nada daquilo que se faz no
Japão ou nos Estados Unidos. Os leitores japoneses ou americanos não conhecem
nada daquilo que se faz na França. Mesmo na Alemanha, na Grã-Bretanha ou na
Itália, não se sabe nada da história em quadrinhos franco-belga. Esse paradoxo
me estraga as fichas. É como se uma bomba estava sobre o ponto de explodir.
Como você explica
essa falta de reconhecimento internacional?
A história em quadrinhos francesa não é assaz exótica e a edição
francesa é fragmentada. Ela avança em ordem dispersa, sem estratégia comum. A
França agita-se, pratica a autofagocitose, a autocombustão, e gira em círculo.
Eu falo regularmente com os editores, mas eles são demais ocupados por suas
viagens a Tóquio, onde eles vão comprar os mangás e desenvolver seu
departamento de história em quadrinhos japonesa.
Você lamenta então
essa estratégia de visão curta?
Eu tenho contribuído em importar os mangás, na Europa, porque eu acho
isso formidável. Mas isso me parece que, hoje, se é cego face a essa ameaça.
Diz-se que a HQ francesa anda bem. E é verdade, no seu pequeno circuito
fechado. Mas é doentia. No entanto, mais que a HQ é também em competição com o
MP3, o telefone, os vídeo games... Todo o mundo rola para si e se puxa a crina.
Isso me lembra “Astérix”, ou a conquista
do Oeste, com as tribos que não chegam a se entender e que são engolidas pela
cavalaria americana. Ao mesmo tempo, essa diversidade, ela é genial: os Estados
Unidos são um país uniforme, uma sociedade mcdonaldisada.
Precisamente, na
França, se lê também muito história em quadrinhos de autor quanto os mangás...
A história em quadrinhos cobre um espectro largo e rico. Se ela se
limitasse a um editor popular, como Soleil, ou, ao inverso, às experimentações
da Association, isso seria inquietante – e, aliás, na Association, não se
desejaria ver desaparecer a HQ de massa, não mais que na Soleil não se
desejaria ver desaparecer a HQ de laboratório. As duas devem poder coabitar.
Quando, em 1975, com Jean-Pierre Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farjas,
se tem criado as edições dos Humanoïdes Associés, se tem participado da
comunitarização das tendências. Eu era
retraído, quando eu trabalhava em “Pilote”, pela heterogeneidade: do todo
popular de baixo nível às coisas muito ambiciosas, quase esotéricas. Isso não
permitia a expressão de um sonho coletivo consciente. Em torno dos “Humanos” ou
de “L’Echo des savanes” um geração se é cristalizada, aquela dos “jovens
adultos”. O trabalho fornecido, durante dez anos, por nossa revista, “Métal
hurlant”, tem mudado o tratamento e feito evoluir o olhar dado sobre a história
em quadrinhos. Hoje, eu sinto a mesma energia, mas eu não posso me impedir de
ser minado por uma angústia surda: atrás da ebulição, eu entendo vir a
agitação.
Jean Giraud
1938 Nascimento em Nogent-sur-Marne (Val-de-Marne), França.
1963 Publicação, em “Pilote”, de “Fort Navajo”, primeiro episódio da série “Blueberry”, sobre um roteiro de Jean-Michel Charlier.
1963 Publicação, em “Pilote”, de “Fort Navajo”, primeiro episódio da série “Blueberry”, sobre um roteiro de Jean-Michel Charlier.
Assina, sob o pseudônimo de Moebius, histórias curtas em “Hara-Kiri”.
1975 Cocriação de “Métal Hurlant” e das edições Les Humanoïdes Associés.
1980 Publicação de “L'Incal noir”, primeiro volume da série L'Incal, sobre um roteiro de Alejandro Jodorowsky.
1980 Publicação de “L'Incal noir”, primeiro volume da série L'Incal, sobre um roteiro de Alejandro Jodorowsky.
1981 Grand prix de la ville d'Angoulême, por ocasião do Festival de la
BD. N. C.: Grande Prêmio da Cidade de Angoulême, França. Festival da HQ.
1984 Instala-se, por cinco anos, nos Estados Unidos e trabalha com
James Cameron e Ron Howard.
1997 Colabora em “Le Cinquième Elément”, de Luc Besson. N. C.: “O Quinto
Elemento”, filme.
2007 Lançamento de “La Version irlandaise”, sobre um roteiro de Jean
Van Hamme.
Fonte: L’Express, Paris,
França.
Afrânio Braga
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