quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A última aventura do tenente Moebius

A última aventura do tenente Moebius


O pai de “Blueberry” e de “L’Incal” era um dos pontas de lança da nova HQ. Ele morreu em 10 de março.

Le Monde | 12/03/2012
Por Frédéric Potet



O desenhista Jean Giraud, aliás, Moebius, em Paris, em janeiro de 2009.


Penetrar no antro de um deus vivo, naquele dia, abalou quaisquer ideias recebidas. Era uma manhã de setembro de 2010, e Jean Giraud me receberia em sua casa, perto de Paris, algumas semanas antes da estreia da grande retrospectiva que a Fondation Cartier consagraria a ele. Por que se espera ver os gênios viver em habitações suntuosas e espaçosas como o campo de sua imaginação? A pequena casa-ateliê de Montrouge não tinha nada, mas verdadeiramente nada de ostentoso. Alguns degraus a subir atrás de uma grade anônima, um cômodo único ao rés-do-chão com uma pequena cozinha ao fundo, os utensílios na pia, as caixas de papelão com desenhos ali, os livros, as revistas... Em suma, uma bagunça simpática, atestando uma atividade prolífica e a presença de um mundo interior.

Sobre a mesa, negligentemente colocado, um pequeno caderno de desenhos convidava os visitantes a folhear suas páginas. “Vá lá, vá lá!”, autorizou amigavelmente o anfitrião preparando um café. Depois de vários anos, Giraud desenhava as suas histórias sem rascunho – diretamente ao pincel, sem a menor lapisada – sobre esses pequenos calepinos apenas maiores que as agendas telefônicas. Por evidentes razões de conforto, a grande maioria dos autores de histórias em quadrinhos trabalha sobre formatos superiores ao tamanho dos álbuns publicados. Giraud fazia ao inverso. “Ele explicava que aquilo o obrigava a mais concentração.”, revela o roteirista e jornalista Jean-Pierre Dionnet que com ele funda a revista “Métal Hurlant” na metade dos anos 1970. O exercício tinha também, sem dúvida, um sabor de desafio. Esse gosto pelo risco permanente ao qual, finalmente, Jean Giraud jamais faltou durante toda sua carreira.

Foi particularmente por isso que seu falecimento, sábado, 10 de março, em Paris, à idade de 73 anos, criou tal emoção no pequeno mundo da 9ª arte. Raramente um autor de HQ foi tão festejado por seus pares, todas as gerações embaralhadas, e por seus leitores. Sua dupla identidade – Gir para seu período Blueberry, Moebius para a vertente fantástica e onírica de sua obra – tem, evidentemente, muito contribuído em sua aura nessa disciplina ou quanto repetitivo e sujeito aos sistemas que é a história em quadrinhos.

A grande força de Gir-Moebius foi de ser diferente e idêntico ao mesmo tempo. De multiplicar os estilos sem desistir de uma coerência gráfica. De se renovar sem se revogar. “Eu sou raramente antagonista na medida onde eu tenho duas assinaturas que me dão acesso aos campos inteiros da expressão, com a tese e antítese, o diabo e o anjo. Eu me saio bem em me trair sem me deixar.”, ele explicou naquele dia em Montrouge.

Viagem ao México

Jean Giraud nasceu em 8 de maio de 1938 em Nogent-sur-Marne (Val-de-Marne), França. Então quando ele era aluno da École de Arts Appliqués de Paris, sua juventude foi marcada por uma viagem ao México, onde partiu para viver sua mãe, separada de seu pai. Uma estada no deserto o marcará na vida e se tornará mais tarde um tema recorrente em sua obra, do Blueberry das estreias às histórias introspectivas publicadas nesses últimos anos ao seio de sua pequena editora (Stardom). “No deserto”, ele dizia, “se abandona toda a acumulação cultural que nos embarace, quer seja em matéria de narração, de demonstração... Além disso, em toda parte, não se pode dar um passo sem cair sobre uma regra, sobre uma armadilha ou sobre um fogo vermelho. No deserto, não resta mais que ser cultural internalizado, o personagem que deambula e que coloca as questões: é isso que é o bem e o mal? O quê é isso que eu faço? É isso que é a criação? Se eu me represento a mim mesmo, é nisso que eu me torno criatura ou isso ainda sou eu?”.

Ele tem justo 18 anos, em 1956, quando ele publica suas primeiras histórias em quadrinhos em diversas publicações para a juventude: “Fripounet et Marisette”, “Âmes vaillantes”, “Coeurs vaillants”. No início dos anos 1960, seu encontro com Joseph Gillain, dito Jijé, dá uma acelerada em sua carreira. Esse último o recruta como assistente em um episódio de “Jerry Spring”, “La Route de Coronado”, em cujo ele é encarregado da arte-final. Pouco tempo depois, o roteirista Jean-Michel Charlier, regressando de um reconhecimento no Nevada para um episódio das aventuras do aviador Buck Danny, procura um desenhista para uma série western que ele tem na cabeça. Demais ocupado, Jijé declina a oferta, mas orienta Charlier rumo a Giraud. Em 1965, estreia “Fort Navajo”, a primeira história de um tenente do exército americano de nariz quebrado e de caráter forte, Mike “Blueberry” Donovan.

Esse personagem vai dar a ocasião a Giraud, que assina Gir desde o primeiro episódio, de “fazer cinema sobre papel”. À medida dos períodos, seu herói vai emprestar os traços de numerosos atores: Jean-Paul Belmondo, Charles Bronson, Clint Eastwood, Arnold Schwarzenegger, Vincent Cassel (que interpreta o papel de Blueberry no cinema no filme de Jan Kounen em 2004). “A cada vez, eu corrigia um nariz quebrado, assim como um corte de cabelo à la Mike Brant!”, se divertia Giraud, grande admirador de Sam Pechinpah, de Sergio Leone e, sobretudo, de John Ford “que toda sua vida foi esquartejado entre o machismo branco da conquista do Oeste e a consciência que ele tinha das minorias oprimidas”. A amizade de Blueberry pelos índios fazia dele o mais “fordiano” dos personagens de histórias em quadrinhos.

Paralelamente à sua série de sucesso, Giraud inventa muito rápido um dublê que ele chama Moebius – em referência à fita do sábio Möbius, símbolo do infinito – e com o qual ele vai desbravar as terras pouco exploradas na história em quadrinhos, aos confins do sonho e da ficção científica.

A reviravolta desse período é a criação, em 1975, de “Métal Hurlant”, ao lado de Dionnet, Philippe Druillet e Bernard Farkas. É, então, o nascimento do herói mudo Arzach, que fará escoar de tal maneira de tinta. “À época, “Métal Hurlant” vivia constantemente no perigo de morrer”, conta Giraud na entrevista que “Le Monde Magazine” tirou desse encontro com ele. “Nós não sabíamos jamais se nós iríamos lançar o número seguinte. A garantia da surpresa editorial era nossa própria surpresa. De onde esse personagem sem palavra nem referência cultural que eu fazia à noite após o trabalho – após Blueberry, que coisa. Era um modo de ser provocante.”.

Um meio também de evitar a alienação de um trabalho que fez afundar na depressão tantos autores da época, Franquin encabeçando. Jean-Pierre Dionnet se lembra de uma discussão com Moebius, onde este lhe promete, para a semana seguinte, uma história de ficção científica em oito páginas: “Ele me entregou finalmente uma história se desenrolando na Idade Média! A história inicial, visto que ele já me contara, não tinha mais necessidade de ser nova.”. No mesmo período, Moebius realiza uma capa de “Métal Hurlant” “nenhum pouco bonita”, indigna de seu talento, se lembra ainda Dionnet. Este se espanta. “Eu o expressei”, lhe responde Giraud. “Eu queria ver se, porque eu era Moebius, se poderia totalmente me transpor.”.

Consciente de sua genialidade e solicitado por toda parte, ele não menos continua as aventuras de Blueberry que ele descreve como “o patrocinador pessoal de Moebius.”. Suas explorações futuristas o conduzem a colaborar com o roteirista Alejandro Jodorowsky que cria, para ele, o personagem John Difool. Entrementes, o cinema dá a ele olhares doces, mesmo se Giraud não se tornará jamais aquilo que ele sem dúvida sonhou de ser igualmente: diretor. “Eu não diria que o cinema me deixou à margem do caminho.”, dizia ele ainda no outono de 2010. “Antes fui eu que o deixei passar. Infelizmente é difícil ter várias vidas simultaneamente. Fazer do Moebius sem a menor concessão, totalmente continuando Blueberry, demanda já um investimento interno considerável.”.

Venerado no Japão, solicitado pela Marvel aos Estados Unidos (onde ele trabalha com Stan Lee), idolatrado na França por seus leitores de longa data (apesar das tiragens tornadas mais confidenciais nesses últimos anos), Giraud não tem, sem dúvida, o reconhecimento que ele merecia nas mídias ou junto das instituições. Em 2010, a retrospectiva da Fondation Cartier resta a única grande exposição que a ele foi consagrada. Giraud não fica à sombra, ou pelo menos se esconde sob seu grande chapéu negro. “Fundamentalmente, os artistas são os acrobatas, os saltimbancos, e eles vivem unicamente porque eles atraem a atenção dos transeuntes que lançam uma moeda.”, dizia ele. “A única postura que vale é aquela do cigano que exibe o urso em seu circo. A base do ofício.”.


Datas-chaves
1938
Nascimento em Nogent-sur-Marne (Val-de-Marne), França.
1954
Arts Appliqués de Paris.
1956
Primeiras HQ em publicações para a juventude.
1961
Jijé o contrata como assistente em “Jerry Spring”.
1965
Estreia de “Fort Navajo”, primeiro álbum de “Blueberry”.
1969
Utiliza pela primeira vez o pseudônimo Moebius. (1)
1975
Criação de “Métal Hurlant”.
1977
“Alien”, de Ridley Scott.
1980
“John Difool” sobre um roteiro de Alejandro Jodorowsky.
1985
Trabalha no Japão sobre uma versão animada de “Little Nemo”.
2000
Trabalha no Japão com Jiro Taniguchi.
2005
“Inside Moebius”, história introspectiva.
2007
Assina um episódio de “XIII” com Jean Van Hamme.
2010
Retrospectiva "Trans- Forme" na Fondation Cartier.
10 de março de 2012
Morte em Paris.

N. C.:

1) Comentário de Charles Tatum nesse artigo do jornal “Le Monde”: «O pseudônimo “Moebius” não nasceu em 1969, mas no verão de 1963 nas colunas de “Hara-Kiri” (“L’Homme du XXIe siècle” particularmente). Ou seja, alguns meses antes das primeiras pranchas de Blueberry (fim de 1963, “Pilote”).» (2)

2) “Fort Navajo”, a primeira história de Blueberry, foi publicada na revista “Pilote” nº 210 de 31 de outubro de 1963.

La dernière aventure du lieutenant Moebius © Le Monde / Frédéric Potet 2012
Fotografia de Jean “Moebius” Giraud © Agence France-Presse – AFP / Franck Fife 2009

Afrânio Braga